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domingo, 5 de fevereiro de 2012

Mulher: sujeito de experiência[1] na Batalha da Borracha



DAYANE BARBOSA MATOS


[...] seqüência de acontecimentos, ocorridos em sua maioria no hemisfério norte ou do outro lado do Oceano Pacífico, que deu origem no Brasil à quase desconhecida Batalha da Borracha. Uma história de imensos sacrifícios para milhares de brasileiros mandados para os seringais amazônicos em nome da grande guerra que conflagrava o mundo civilizado. Um capítulo obscuro e sem glórias de nossa história que só permanece vivo na memória e no abandono dos últimos soldados da borracha (NEVES, Marcos Vinícius[2]).


            Assim teve início a chamada Batalha da Borracha[3], mas a intenção não é discorrer mais uma vez sobre esse acontecimento. Atear-se-á aqui, a um sujeito que vivenciou esse acontecimento. Sujeito que quase sempre é esquecido, pouco mencionado e quase nunca levado em consideração: a mulher.
            Relembrando a fala da estimada Bezerra[4], o Centro de Documentação e Informação Histórica – CDIH, da Universidade Federal do Acre; encontra-se repleto de Monografias e Trabalhos de Conclusão de Curso referentes ao: 1º e 2º Surto da Borracha, bem como sobre a Guerra do Acre[5] e os Sindicatos (informação verbal).
            No que diz respeito aos trabalhos que abordam o 2º Surto da Borracha, notou-se que basicamente só é trabalhado a questão do Soldado da Borracha (homem), esquecendo-se quase sempre das mulheres, essas quando mencionadas, são apenas no papel de esposas, mães e filhas dos heróis do Acre.
            Tomando como base o fato de que a mulher, assim como o homem (soldado da borracha), foi também um sujeito diante o cenário em questão, o presente artigo discorrerá somente acerca da mulher, apontando e pontuando as várias mulheres existentes na mulher seringueira.

1.1 – Mulher-seringueira:

A discussão sobre o trabalho das mulheres nos seringais é escassa e restrita a frases e/ou parágrafos, quando não totalmente inexistente no âmbito da etnologia, história e iconografia, em que pese o extenso e importante corpo de produção acadêmico-iconográfico sobre o processo de produção da borracha, notadamente na América Latina. (SIMONIAN apud PORTELA, Michelle da Costa. Inpa, 2006).


            Por ser considerada a extração da borracha uma atividade pesada e perigosa, logo se atribuiu a idéia de que a extração da borracha era um trabalho unicamente masculino, o que legitima o silenciamento no que diz respeito ao trabalho das mulheres na produção da borracha.
            Segundo Souza[6] e Silva[7], Simonian[8] desenvolveu durante os anos de 1986 e 1987, uma pesquisa sobre as mulheres seringueiras nos seringais de Xapurí, Tarauacá, Rio Branco e Brasiléia e constatou que tantos os homens como as mulheres, ainda insistem em tornar invisível a participação da mulher na produção da borracha.
            O que faz-nos perceber que essa divisão sexual do trabalho que ocorre no campo das idéias e dos discursos[9], que se sustentou historicamente[10] acabou sendo incorporado ao discurso das mulheres seringueiras.
            Mesmo diante esse silenciamento, sabe-se que o governo recrutou homens (soldados da borracha) para “servir a pátria”, porém de acordo com Souza e Silva, existem registros de que as mulheres também exerciam atividades nesses espaços (os seringais), atividades que iam desde a coleta do látex e defumação até os serviços domésticos, principalmente.
            Apesar de toda a fragilidade, submissão e pureza que constituem o modelo de mulher ideal; a mulher seringueira vai encontrar na desilusão de uma vida melhor, forças, e assim apresentou sinais de resistência à dura vida na floresta, vida a qual não estava habituada.
            Umas viúvas, outras abandonadas pelos maridos, viram-se obrigadas a aprender a pescar, remar, atirar e ainda mais, trabalhar na extração do látex, já que há tempos dominavam o trabalho da roça: ordenhar, capinar, plantar, colher... Fato que contraria o silenciamento e a invisibilidade do trabalho feminino nos seringais, durante o Segundo Surto da Borracha.



1.2       – Mulher: mãe e doméstica

            É do saber de todos que quando os milhares de nordestinos e outros foram recrutados como Soldados da Borracha, os seringais amazônicos não ofertavam boas condições de moradia, bem como de saúde e de educação. Ficando essas duas últimas a cargo das mães.
     
Como gerar filhos queridos diante da amargura que o lugar proporcionava a ela e a seu marido?[...] Sem médicos para assisti-la em seus partos e em suas doenças. Muitas morreram de parto. Parteiras existiam, mas as distâncias imensas as faziam parir sozinhas ou quando menos, ajudadas por seus maridos, que realizavam o que podiam no trabalho de parto, isso quando se encontravam em casa, porque na maioria das vezes se encontravam nos seringais (FERREIRA, Maria Liège Freitas[11])

            Como demonstra Ferreira, a mulher era médica de si mesma, de seus filhos e esposos. Através de saberes indígenas que lhe eram repassados, de saberes ganhos através das experiências vividas, tirava da floresta o próprio remédio. Da floresta vinha doença, da floresta vinha à cura, quando vinha.
            Além de serem responsáveis pela saúde dos filhos e esposos, também era destinado a elas o cargo de educadoras.
            Com fidelidade, repassavam aos seus filhos o pouco - muito[12] que conheciam.
            Também eram exercidas por elas as atividades domésticas. Entre essas atividades estavam à limpeza da casa, o cuidado com os filhos, o preparo da alimentação, o cuidado com as roupas... Atividades não muito diferentes das atuais, a menos no que diz respeito às condições em que tais atividades eram realizadas. Além das atividades já mencionadas, os cuidados com os animais domesticados era responsabilidade das mulheres, bem como o roçado.
           


02 – Tristeza, solidão e saudades de outrora

[...] na empresa seringalista a mulher constituiu mão de obra atuante tanto quanto os homens. Mas pela condição de ser mulher e, portanto, carregando o estigma da pureza e da submissão foi a que mais sofreu com o “código da mata” a que foram submetidas (FERREIRA, Maria Liège Freitas).

           
            Nos discursos referentes à importância da ocupação da Amazônia, era enaltecido o papel da família, instituição que cabia ao homem exercer o papel de autoridade.
            Assim, serão essas mulheres submissas e reprimidas pela ordem social vigente, que irão acompanhar os maridos (futuros soldados da borracha), muitas delas por obrigação, até os seringais acreanos. Agora será somada a dor da repressão que sempre fora submetida pelos discursos sexistas, a dor da migração. Será ela arrancada de seus entes queridos, de sua realidade, etc.
            Haesbaert[13] apud Ferreira, afirma que o desterritorializar na mulher ocorre de uma forma mais lenta do que no homem. Na mulher, esse processo é mais traumático, pois a desterritorialização nunca apaga sua identidade, seu local de origem. Visto que o sentir da mulher é diferente do homem, pois as óticas são diferentes, a forma como é realizada a leitura da floresta bandida[14] é outra, a mata é vivenciada e sentida de um outro jeito.
            “Como dividir seu corpo e bem querer a um homem também marcado e sofrido pela revolta da exaustão no trabalho da seringa?”, pergunta Ferreira. Simples, sexo por obrigação. Mais uma dor a ser somada as já inúmeras dores sentidas/vivenciadas por elas.
            Assim, seja ela a imigrante ou a índia tomada à força, retirada dos seus, maltratada, violentada e depois tomada como esposa, a que mais sofrerá a vida nos seringais acreanos.
            A saudade de seus lugares de origem somada à dor da exploração física e sexual a que estavam submetidas, aos maus tratos dos esposos seringueiros e da própria floresta, faziam das mulheres os personagens mais sofridos no cenário da mata.
            Sofrimento que só encontrava refúgio nos encontros com outras mulheres nos igarapés onde lavavam as roupas; nos batizados, casamentos, encontros motivados pela ordem religiosa era o lugar do desabafo, das queixas. Momento onde ficavam longe do olhar de seus vigilantes.


           
03 – Considerações finais
           
            Assim como foi discutido nas palavras acima, viu-se o descaso dado a questão: mulher sujeito de experiência durante o Segundo Surto da Borracha.
            Felizmente percebe-se que mesmo lentamente, já começa surgir focos de produção acadêmica a assuntos relacionados. Como é o caso de Souza e Silva, Portela[15], Ferreira e a não menos importante Simonian que ao longo dos anos vem se dedicando a causa: mulher na Amazônia.
            Esses trabalhos, mesmo que não tratem diretamente da mulher durante a batalha da borracha, muito ajuda enquanto material disponível a pesquisa bibliografia. Trabalhos de considerável importância acadêmica, política e social, que trazem afirmações e indagações dignas de serem discutidas e aprofundadas.
            Assim, espera-se que o presente trabalho tenha contribuído, mesmo que de maneira simplória e ainda superficial, para a comunidade acadêmica. Chamando-lhe atenção para essa discussão, que a um primeiro olhar pode parecer ultrapassada[16], mas que ainda tem muito a ofertar.




[1] Aqui será entendido por “sujeito de experiência”, aquele que desenvolve a prática, a prática de vida no mundo. O mundo em questão são os seringais acreanos durante o Segundo Surto da Borracha.
[2] NEVES, Marcos Vinícius. Historiador e arqueólogo Marcos presidente da Fundação Garibaldi Brasil.
[3] Cf. A Batalha da Borracha na Segunda Guerra Mundial; Obra de Pedro Martinello.
[4] BEZERRA, Maria José. Possui Doutorado em Ciências pela Universidade de São Paulo (2006). Atualmente é estatutária da Universidade Federal do Acre.
[5] É assim que os bolivianos se referem ao período que corresponde a 1899-1903. Partindo da premisse de que o que houve não pode ser chamado de revolução, entendo aqui que revolução é uma mudança no campo da superestrutura: no social, econômico, político, ideológico... Optou-se por adotar o termo utilizado pelos bolivianos.
[6] SOUZA, Sheila Ximenes de. Discente do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Rondônia – UNIR e Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre a Mulher e Relações de Gênero – GEPGENERO
[7] SILVA, Maria das Graças Silva Nascimento. Professora Adjunta do Departamento de Geografia, Coordenadora do GEPGENERO e Orientadora no Mestrado em Geografia.
[8] SIMONIAN, Ligia Terezinha Lopes. Possui Doutorado em Antropologia - City University of New York (1993) e Pós-Doutorado na City University of New York (2000/2001). Atualmente é professora associada do quadro de docentes da Universidade Federal do Pará, junto ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA).
[9] Percebeu-se que essa divisão sexual do trabalho só existe no campo das idéias e dos discursos, tendo em vista o trabalho exercido pelas mulheres no processo de produção da borracha, mesmo que esse seja considerado tipicamente masculino.
[10] Acredita-se que não é apenas no Segundo Surto da Borracha que há esse silenciamento do trabalho feminino.
[11] Maria Liège Freitas Ferreira. Profª no Departamento de História e Geografia, da Universidade Federal de Campina Grande, Campus de Campina Grande. Mestre em História, pela Universidade Estadual Paulista, UNESP – Campus de Assis.
[12] No sentido de que pouco conheciam das leis e coisas do gênero, mas muito sabiam da floresta, das coisas da vida. E assim, preparavam da melhor forma possível os filhos, para que esses fossem fortes e menos sofridos.
[13] Rogério Haesbaert da Costa. Doutorado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo, Brasil (1995) Professor Associado II da Universidade Federal Fluminense.
[14] A mulher verá na floresta a causa de todas as suas dores.
[15] PORTELA, Michelle da Costa; da UFAM.
[16] Por se tratar de um dado período histórico já muito trabalhado e discutido entre os historiadores locais e 
regionais.



Referências bibliográficas

FRANÇA, Vera. O discurso de identidade, discurso de alteridade: o outro por si mesmo. 2001. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/gris/biblioteca/ artigos/discurso-de-identidade-discurso-de-alteridade-o-outro-por-si-mesmo.pdf /view. Acesso em: 25 de jun. de 2010.


FERREIRA, Maria Liège Freitas. Mulheres no seringal: submissão, resistências, saberes e práticas (1940-1945). Disponível em: http://www.fef.unicamp.br/sipc/anais8/Maria%20Li%C3%A8ge%20Freitas%20Ferreira%20-%20UNESP% 20Pg.pdf. Acesso em: 28 de jun. de 2010.


PORTELA, Michelle da Costa. A mulher seringueira em Varadouro – um jornal das selvas. In: FAZENDO GÊNERO – CORPO, VIOLÊNCIA E PODER, 8., 2008. Florianópolis. Disponível em: http://www.fazendogenero8.ufsc.br/ sts/ST19/Michelle_da_Costa_Portela_19.pdf. Acesso em: 30 de jun. de 2010.


SOUZA, Sheila Ximenes de; SILVA, Maria das Graças Silva Nascimento. Os ciclos econômicos e a condição feminina na Amazônia rondoniana. In: FAZENDO GÊNERO – CORPO, VIOLÊNCIA E PODER, 8., 2008. Florianópolis. Disponível em: http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST49/Souza-Silva_49.pdf. Acesso em: 30 de jun. 2010.


NEVES, Marcos Vinícius. Soldados de uma guerra sem fim - a esquecida batalha da borracha. Disponível em: http://www.bibliotecadafloresta.ac.gov.br/index.php. Acesso em 03 de jul. 2010.

SANTOS, Fabiane Vinente dos. "Brincos de ouro, saias de chita": mulher e civilização na Amazônia segundo Elizabeth Agassiz em Viagem ao Brasil (1865-1866). História, Ciências, Saúde – Manguinhos. v.12 n.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2005. Disponível em:  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 05 de jul. de 2010.


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